SAÚDE PÚBLICA/VIGILÂNCIA EPIDEMIOLÓGICA: Tem sempre um médico-veterinário no combate às zoonoses e arboviroses
Na Medicina Veterinária, em especial na área de zoonoses, o desafio diário vai além do diagnóstico e tratamento das mais de 200 doenças transmitidas do animal para o homem. A prevenção e o controle de agentes de doenças são prioridades. Os últimos dados da Organização Mundial da Saúde Animal (OIE) mostram que 75% das doenças humanas emergentes ou reemergentes do último século são zoonoses.
“De cada dez doenças que se apresentam clinicamente em seres humanos, pelo menos sete são causadas por agentes infecciosos pertencentes a gêneros que também já foram identificados em animais”, explica o médico-veterinário Nélio Batista de Morais, presidente da Comissão Nacional de Saúde Pública Veterinária do Conselho Federal de Medicina Veterinária (CNSPV/CFMV).
Coordenador de Vigilância em Saúde da Secretaria Municipal de Saúde de Fortaleza, entre outras atribuições, Morais ressalta que a Medicina Veterinária ocupa uma posição central e essencial no desenvolvimento de ações preventivas para a saúde pública. “Pelo seu conhecimento sobre o papel de animais e vetores na transmissão das doenças endêmicas e epidêmicas, no diagnóstico laboratorial, na vigilância em saúde, na atenção primária e na pesquisa, o Médico-Veterinário é um dos principais profissionais para atuar na interface homem-animal-ambiente, e, dessa forma contribuir em todas as etapas, desde o campo até a mesa do consumidor, mas principalmente na prevenção e no controle das principais zoonoses e dos próximos riscos de possíveis epidemias, completa.
Levantamento feito pela CNSPV/CFMV, com base nos relatórios de 2019 do Ministério da Saúde, aponta que entre as zoonoses incidentes no país, mais de 80% dos casos de óbito em humanos estão ligadas a apenas duas: leptospirose (47,5%) e leishmaniose visceral (32,7%). Isso não tira o foco das autoridades de saúde pública no combate às demais.
“Doenças transmitidas por insetos vetores, como dengue, zika, febre chikungunya e malária, têm um potencial de acometer um grande número de indivíduos, levá-los a óbito e causar epidemias. Existem outras doenças vetoriais que envolvem um animal vertebrado como reservatório ou amplificador dos microrganismos ou vírus, como é o caso de: febre amarela, leishmaniose visceral, leishmaniose tegumentar, doença de Chagas e febre maculosa, além da leptospirose, hantavirose, toxoplasmose, raiva e, mais recentemente, a esporotricose zoonótica”, reforça Morais.
Ele ressalta, ainda, os novos agentes infecciosos que podem emergir para uma transmissão inter-humana e causar epidemias e pandemias, como é o caso da Síndrome Respiratória Aguda Severa (SARS) e, agora, a covid-19. Nessas doenças virais, a suspeita é que os vírus envolvidos tenham se originado de animais.
Animais de produção
No espectro das zoonoses, também é importante destacar as que podem acometer animais de produção de interesse econômico, como a tuberculose e a brucelose bovina, bem como a salmonelose, para citar algumas das que podem ser transmitidas pela ingestão de produtos de origem animal contaminados e representam um sério risco para a saúde pública.
O Brasil se consolidou como uma potência no agronegócio. O rebanho bovino, por exemplo, é o maior do mundo, com 222 milhões de animais, segundo dados do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa). Mais que quantidade, a carne de gado brasileira é reconhecida pela sua excelência, afinal, somente um rebanho saudável pode ser exportado e ganhar a confiança dos mercados mais exigentes do planeta.
Em Santa Catarina, único estado brasileiro reconhecido mundialmente como Zona Livre de Febre Aftosa sem Vacinação, também livre de Peste Suína Clássica e sem nenhum caso registrado de gripe aviária, a meta agora é erradicar a brucelose e a tuberculose bovina, problemas sérios na saúde pública e um entrave na exportação. Os desafios são grandes, explica a médica-veterinária Karina Diniz Baumgarten, que há 11 anos coordena o Programa Nacional de Controle e Erradicação de Brucelose e Tuberculose (PNCEBT) no Estado.
“No início, era difícil fazer as pessoas entenderem que a brucelose era uma zoonose e que os produtores e trabalhadores das fazendas corriam risco de se infectar. Como não havia diagnóstico em humanos, era normal que não acreditassem. Depois de 2012, com a publicação do Protocolo de Atendimento à Brucelose Humana pela Diretoria de Vigilância Epidemiológica do Estado (Dive/SC), casos humanos foram detectados e tratados. Com a divulgação desses números, a população ficou mais alerta. Agora, estamos trabalhando o Protocolo de Tuberculose Zoonótica com a Dive, o qual deve causar impacto semelhante”, explica Karina.
A preocupação com a saúde humana é uma constante neste meio. “A população só ficará protegida quando erradicarmos estas doenças no rebanho bovino. Os grupos de maior risco são os próprios Médicos-Veterinários de grandes animais, os produtores, trabalhadores rurais, técnicos de laboratórios de diagnóstico, de produção de vacina e magarefes. Estes últimos sofrem com estas doenças endêmicas, pois todo o rebanho vai algum dia para o abate, independente de conhecer seu status sanitário, então eles estão diariamente expostos aos riscos”, diz a coordenadora.
Ameaças globais necessitam de uma resposta global e, nesse cenário, quais seriam as estratégias para combater a transmissão de agentes patogênicos? A indagação é da médica-veterinária Janice Ciacci Zanella, pesquisadora e chefe-geral da Embrapa Suínos e Aves. “Algumas lições foram aprendidas com a emergência da SARS e da influenza aviária, por exemplo. A perda de mercados para produtos de origem animal é uma realidade quando a saúde pública está em jogo. A detecção precoce e a notificação de doenças, bem como o compartilhamento de informações e de agentes patogênicos entre países, são pontos-chave para uma pronta resposta no âmbito nacional e mundial”, pondera.
De acordo com a pesquisadora, os fatores para emergência de doenças são pouco conhecidos e entendidos, mas o principal é a expansão da população humana. Outros fatos, como a urbanização, a alteração das práticas de manejo, interação com animais silvestres, mudanças no meio ambiente e aquisição pelos patógenos de novos fatores de virulência estão entre os principais. Em resumo, a maioria dos fatores são impostos pela interferência do homem. “As cidades estão crescendo, as pessoas estão morando mais próximas de regiões antes não habitadas e os cursos dos rios estão mudando. Isso faz com que vírus e bactérias que estavam restritos a determinadas regiões se desloquem. O fato das pessoas viverem mais reduz a imunidade e o homem torna-se mais suscetível a doenças. Isso sem contar com a evolução natural dos patógenos”, aponta.
“Compreendendo esses fatores, agindo em todas estas frentes é possível monitorar e controlar esses eventos quando eles ocorrem”, afirma a pesquisadora. No último século, emergiram ou reemergiram pelo menos 14 doenças infecciosas ou parasitárias, com destaque para ebola, dengue, chikungunya, zika, febre amarela, tuberculose, SARS, sarampo, varíola, HIV/ AIDS, gripes (influenzas humana, aviária ou suína) e parasitoses.